A arte movediça de Guita Soifer

José Castello

A rua José Loureiro, no centro de Curitiba, é uma fronteira entre a cidade moderna, que se afirma, e a cidade
antiga que, aos poucos, se retrai. Nela, saio em busca de determinado número que me foi passado por Guita
Soifer como o endereço de seu ateliê- Em dada esquina, chego a um estacionamento. Lá está o número, fixado
logo à entrada, para me surpreender. Atravessando o pátio de automóveis, me pergunto como, daquele
emaranhado de carrocerias que queimam ao sol, poderá surgir um ateliê de arte. Um manobrista me indica que
desça até o fim, dobre à direita, e procure por uma porta. Que porta? — pergunto. Não há como errar, ele diz,
não há outra.

Diante da porta improvável, ainda aturdido, me pergunto como uma artista pode sobreviver ali. Cimento, cheiro
de gasolina, vapores, nada parece induzir à criação. Guita vem, ela mesma, me receber. Entro, e estou numa
sala ampla, que na verdade é um galpão. Telas, materiais dispersos, vidros de tinta, velharias se dispersam
entre sofás e mesas de trabalho, móveis que procuram sugerir certa ordem num espaço que, no passado, já
abrigou uma oficina de vitrines, uma auto-escola, uma tipografia e um depósito. Nos fundos, uma grande porta
remete novamente para o sol, agora entremeado pelas árvores e pelo sobrevoar de pássaros. E difícil crer que
aquele jardim esteja mesmo ali. Do outro lado, ergue-se uma velha, mas digna casa, que Guita transformou em
sua galeria privada e que ela me leva para visitar com o recato de quem revela um segredo. Aos poucos, bem
devagar, com grande precaução.

Uma palavra sintetiza o trabalho de Guita Soifer, e essa palavra me atropela: assombro. E o que sinto: espanto.
Guita vive em luta contra a tendência à uniformização que gere o mundo contemporâneo. Para fugir da mordaça
lógica e dos padrões, ela prefere trabalhar às cegas, com aquela sensação, como define, “de quem faz o
caminho, mas não sabe o que faz”. Nada de buscar o novo fácil, ou de seguir tendências bem pensantes.
Assusta-se consigo mesma, e é nesse estado de sobressalto que cria. E para se assombrar que Guita Soifer faz
suas gravuras, instalações, pinturas, fotografias, objetos. “Meu trabalho caminha bem à frente de mim”, ela diz,
sem disfarçar o estupor que essa constatação ainda lhe provoca. “O trabalho vai na frente, e eu sigo atrás, bem
mais lenta e sempre espantada com o que sai de mim”. Sua obra transmite exatamente isso: estupor. Não só a
obra, mas antes dela, o lugar, as condições, a ambientação, a sensibilidade em que é gerada. A mulher que a
gera.

Os princípios que norteiam Guita são alguns dos mais desprezados na era contemporânea: a ignorância, a
surpresa, a imprudência, o improviso, a humildade para esperar que, enfim, o novo apareça. Não a novidade a
fórceps, a novidade manobrável das butiques, ou a novidade chique dos esnobes. No tempo em que vivemos,
em que as pessoas só costumam se sentir seguras diante do que já conhecem e do que julgam controlar, a obra
de Guita desfere um soco. Num tempo em que os artistas buscam o novo a qualquer preço, ela conhece bem o
preço pessoal que deve pagar paia dar cada pequeno passo. Não porque proponha temas, ou objetos
escandalosos, já que trabalha com coisas cotidianas e até banais. O que muda não é o objeto, mas a maneira
de abordá-lo. A arte de Guita não está no que ela faz, mas no que ela faz do que faz.

Guita Soifer começou fazendo arte figurativa, mas, para perder o controle sobre seu trabalho e se entregar ao
espanto, dirigiu-se para o abstracionismo. Assim, dispensou aqueles laços de segurança e muletas em que os
artistas, mesmo os mais ousados, se apoiam. Ondas, tendências, escolas, cânones, nada disso lhe importa.
Guita passou a perseguir não um objeto dado, ou cobiçado, não um efeito, ou tal reação; ao contrário, começou
a buscar justamente aquilo que não sabia que estava buscando. Foi essa entrega ao surpreendente, essa
rendição às forças que nos movem enquanto seres humanos, e que sempre nos escapam, que ela se pôs a
exercitar. Como um sensitivo a inquirir energias que se movem muito além dele, dedicou-se a criar
compulsivamente, séries repetidas ao cansaço, ou muitos projetos tramados ao mesmo tempo, exercitando uma
maneira circular e impetuosa de agir. Entregando-se a uma estética da espiral, um transe que, ao contrário da
experiência dos religiosos, não se apoia no espírito, mas no concreto. Guita passou a praticar, desde então,
para repetir a expressão de Gaston Bachelard que lhe é grata, um “devaneio da matéria”. É manipulando a
matéria como uma cega que tateia, ou uma criança que experimenta, que Guita trabalha.

Suas mãos trabalham “como se” não fossem dela, quer dizer, Guita não lhes dá ordens, nada espera delas, vai
simplesmente sondando, caminhando às apalpadelas, dançando no escuro. Qual escuro? Suas próprias trevas
interiores, aquelas zonas disformes e inomináveis às quais não temos acesso senão muito indireto e sutil,
através da intuição, ou da entrega. Com isso, Guita Soifer segue uma tendência de seu próprio temperamento:
“Eu sou prolixa e não sou linear”, define-se. É uma mulher que fala com firmeza, mas sem impostação, que
persegue o fio das palavras como se seguisse a linha de um labirinto, pois tem consciência de que a vida não
tem rumo. Carregando uma longa experiência com a psicanálise, Guita faz um pouco, de seu ateliê, um divã. Só
que ali, ao contrário do paciente deitado diante do analista, entregue à atenção alheia e à expectativa da
interpretação que vem de fora, Guita está completamente só. Deve, assim, dar conta dos dois papéis, é aquela
que devaneia e aquela que reflete, a que gira e também a que se mantém firme, como mastro. Como já
escreveu Olívio Tavares de Araújo, nela se reúnem, em idêntica medida, “um processo essencialmente
compulsivo e exorcista da criação e uma inclemente necessidade de refletir filosoficamente”. Para isso, Guita
precisou primeiro livrar-se da asfixia produzida pelo ideal do outro. Desistir de agradar, conter o ímpeto de ser
amado, voltar-se para si. “Assumir que não quero ser original”, ela resume, foi o mais duro. Nenhum ideal de
perfeição, nenhum sonho vertiginoso, nada que a distraia de si. Uma opção radical pelo presente e pelo ato.

Não é fácil arcar com esse duplo papel, mas é esse desdobramento que faz de Guita Soifer uma artista
absolutamente singular. A mulher que me recebe e, suave, conversa comigo, tem também uma postura
duplicada. De um lado é tímida, prudente, às vezes formal; de outro, abre súbitas janelas de seu interior,
confessa-se, abandona-se. Tudo nela é ambíguo. Por um lado, seu trabalho mais recente, que ela mesma
define como um “auto-retrato”, pode evocar, aos mais precipitados, uma viagem narcisista, só a alegria daqueles
que falam de si. Mas o que faz Guita de si? Em vez de nos apresentar uma imagem fixa ou limpa, sua “melhor
imagem” como tratam de fazer as modelos nas passarelas, ou as atrizes na TV, Guita Soifer nos entrega uma
imagem estilhaçada, difusa e pouquíssimo nítida. Fotografa a si mesma, mas em partes, aos pedaços,
mutilando-se, destruindo-se; e, ainda por cima, deforma, sobrepõe, combina, extermina aquilo que a câmera
“vê”, ou que se espera que ela veja. “Não são imagens de mim, é a ideia do fragmento como ser”, explica. Ao se
fotografar, Guita fotografa um outro. Mas não um outro que está fora, afastado, alheio, e sim o outro que tem
dentro dela e que é ela também.

A artista me apresenta seu ateliê, não como um lugar conhecido, sob o qual exercesse controle, e onde sua
figura dominasse, mas como um mundo diante do qual ela também vacila e se engana. Guita trabalha com
espelhos, esses multiplicadores de imagens, esses objetos traiçoeiros no qual o mundo moderno se vê com
tanta euforia e pretende se encontrar. Onde tudo parece se tornar iluminado. Mas ela faz um outro uso, mais
perverso e mais esperto, dos espelhos. “Em vez de ser o espelho para revelar, é o espelho para ocultar”, díz. E
é assim mesmo, não só para ela, mas para todos nós: porque a imagem que captamos no espelho, no mais
límpido e cristalino dos espelhos, é sempre deformação, fragmentação e ilusão. Esconde mais do que mostra,
simula mais do que revela. Os espelhos são traidores e cínicos: oferecendo a pureza, nos entregam a
desfiguração. E Guita sabe disso, e tira partido disso. “Para que serve na verdade um espelho? Para a gente se
olhar e não se achar tão bondoso quanto pensava”, diz. Para explicar ainda: “O espelho me ajuda a trabalhar o
lado do mal”. Do espelho, espera aquelas alterações que seus próprios olhos, porque é míope, sempre lhe dão.
Ser míope ensinou-a a não acreditar na limpidez do real. Mas não é só o míope, ou o astigmático, que vê por
partes, que vê aos pedaços, que vê “errado”; o “são”, aquele que vê nitidamente, também se engana. Daí seu
interesse por alguns instrumentos, como os espelhos retrovisores, que duplicam o real, tirando assim sua
naturalidade, espelhos em que “você se vigia, mas vigia ao mesmo tempo o outro que vem atrás”. Por isso
também passou a praticar a fotografia, recurso pretensamente puro, neutro, objetivo. Arte técnica que,
supostamente, apresenta o mundo tal qual é. Mas basta fotografar várias vezes seguidas um mesmo objeto para
que se veja a diversidade de imagens que a câmera pode oferecer. “De uma fotografia, você nunca sabe o que
vai sair”, diz. Qualquer turista, com sua máquina de jornaleiro em punho, sabe disso. Mas preferimos esquecer –
Os amigos mais próximos não se espantam quando Guita Soifer lhes conta que passou a tarde em visita a um
ferro-velho, um depósito de detritos, ou mesmo remexendo uma caçamba de rua. E o que ela busca: o objeto
depois de sua utilidade, já privado de suas funções, isto é, busca o que restou do útil. Sapatos jogados fora,
restos de uma casa demolida, objetos quebrados ou esquecidos, coisas sem préstimo, sobras. Aqueles
“inutensílios”, ou “pré-coisas”, como diria o mato-grossense Manoel de Barros, um poeta que procura o que anda
“atrás das casas, como um córrego urbano, entre latas podres e rãs”. Poética do desprezível: Manoel escreveu,
Guita, sem ser uma leitora de Manoel, faz. E, como Manoel, poderia repetir Heráclito: “Tudo, pois, que rasteja,
partilha da terra”. Ela deseja encontrar o objeto deslocado de seu uso, o objeto “puro”, sobre o qual possa então
derramar uma visão lírica e dolorida, a dor diante da coisa desprezada — como um cachorro vira-latas, ou um
manequim nu. Guita persegue esses objetos primitivos porque neles encontra, mais que sentidos,
possibilidades. Sua arte é a arte do possível. E o possível não tem limites.

Daí, por exemplo, seu trabalho com sapatos, deslocados de sua função protetora, dos pés que encobrem,
objetos soltos e inúteis. Guita lembra que, sem os sapatos, nós nos sentimentos não apenas nus, mas
desprotegidos diante das irregularidades do solo. E até um pouco envergonhados. Daí seu trabalho com pilhas
de sapatos, ou de armações de óculos, peças que viu em fotografias de um livro sobre o holocausto e que não
pode mais esquecer. “Foram as últimas coisas que eram tiradas dos judeus antes do extermínio”, ela recorda.
Sem seus sapatos, ou seus óculos, eles ficavam inteiramente desprotegidos. Trabalhou também com seus
célebres livros, livros vazios, de todas as formas, materiais e tamanhos, livros duros, livros moles, mas
desprovidos de conteúdos, sem nenhuma narrativa, nenhuma letra, nada para ler. Homens e mulheres
desnudados para a morte, arrancados daquilo que lhes emprestava dignidade. Livros cegos, sem uma só
palavra. Assim é o mundo de Guita.

Há profunda piedade no trabalho de Guita Soifer, mas não comiseração, e nem sentimentalismo. Ela se põe a
reavivar, reanimar os objetos perdidos, soprar-lhes vida, retirando-os do grande caos dos dejetos para que
venham a ser, numa nova ordem (ou desordem), objetos outra vez. Caos: eis outra palavra que sustenta seu
trabalho. Vai sempre nesse vazio obscuro que precede a criação, anterior à utilidade, ao sentido, à estratégia.
Sua tarefa é uma busca, obsessiva, dos elementos arcaicos que antecedem a existência lógica e o mundo
ordenado. Como se quisesse, através da arte, dar um salto para trás, rumo aos momentos mais remotos da
existência. Acontece que olhar para trás é defrontar-se com a memória, pois o para trás já se perdeu, é
passado, não existe. Aqui cabe pensar em Clarice Lispector, uma autora de cabeceira de Guita. “A Clarice era
muito corajosa, tinha um despudor que eu não tenho”, comenta. Mais que manipular o caos, Clarice lidava com
o mal que é inerente a qualquer pessoa, o mal que (temos horror em admitir) constitui o humano. Achegava-se
dele, revelava sua essencialidade. Guita não esconde: “Mexer com isso me dá medo”. Mas, ainda assim, aceita
sua parte antropófaga: “Eu me alimento muito dos outros”. Pintar, desenhar, gravar, é devorar. E é dessa
deglutição que ela arranca forças para enfrentar o medo.

Por isso, não só o tempo, mas a memória se torna um elemento crucial na arte de Guita Soifer. E nessa
recordação predominam os vestígios de sua origem judaica. O pai era polonês, a mãe era russa, os dois fugiram
da Europa antes da segunda guerra. Chegaram a um país cuja língua não podiam entender, cuja história
desconheciam, cujos hábitos os assustavam. Uma tia querida de Guita, que aqui desembarcou na mesma
época, viu um negro — e imediatamente deu um grito. Ela nunca tinha visto uma pessoa de cor. “Fique calma, é
uma pessoa como nós”, alguém a acalmou. Ao chegar, tudo era surpresa, c foi preciso aprender de novo a viver.
Partir das perguntas primitivas que, ainda hoje, Guita tenta responder com sua arte.

Então, ela se interessa pelo estado do exílio, quer dizer, pelo deslocamento, um homem tirado de sua pátria,
uma mulher arrancada de seu lar, situação que joga as pessoas no desconhecido e as obriga a lidar com as
partes mais antigas de si. Aprender a viver, a falar, a ver, como uma criança que começa a andar. Porque, no
exílio, é preciso voltar ao começo, dar outra vez os primeiros passos. A mãe adaptou-se, o pai — mais tímido —
preferiu se encolher um pouco. “Eles tiveram a grande coragem de vir”, ela se admira. E vir para um país
estranho era defrontar-se com seus medos mais elementares, aqueles que toda pessoa adulta julga que já
superou. A admiração pelo deslocamento remete a Paul Celan, o poeta judeu, nascido na Roménia, que
escreveu em alemão e viveu na França: “Nada/ fomos, nem somos nem/ seremos, todos floridos:/ esse ser do
Nada, essa/ rosa de homem nenhum”.

Guita, ela também, foi uma menina medrosa. Adulta, perdeu esses medos circunstanciais, mas soube conservar
o temor interno que, no fim das contas, significa manter a atenção fixa no desconhecido — não o que está fora,
mas o que está dentro. Através da arte, passou a lidar com sentimentos difíceis, e repulsivos, como a violência.
“A violência me assusta muito, me dá angústia”, admite. Mas, assim como não mastigamos um naco de carne
sem exercitar certa agressividade, ninguém se torna um artista sem enfrentar aquilo que tem de mais bruto.
Raiva, inveja, ira, emoções destrutivas que se tomam, de certo modo, instrumentos da arte. E que ela soube
manipular sem perder a delicadeza. Sua arte, já disseram, é uma luta contra a matéria. Não para submetê-la,
para adaptá-la a certa visão de mundo, ou a certa estética. Mas uma luta como aquela do enfermeiro que, com
toda a força, sacode uma pessoa fora de si, na esperança de que, com esse agitar, ela retome contato com o
que é. Também assim Guita age com sua arte: sacode-a, move-a, a faz tremer para que, nessa convulsão, dela
enfim possa emergir aquilo que esconde. Admite: “No fundo é uma luta contra o medo”. Medo de quê? Medo do
que não se sabe como será.

Essa opção pela perplexidade já se estampa, delicada, em seu semblante. Pequena, discreta, mas inquieta,
Guita não está interessada em me convencer de nada. Escondendo mais que apontando, me passa não
explicações, mas tensões, oscilações, perturbações que configuram aquilo que guarda de mais íntimo. Ninguém,
depois de visitar uma exposição de Guita Soifer, poderá dizer: “Ela é uma mulher assim”, ou “Ela é uma mulher
de tal tipo”, ou quem tem dado temperamento, ou caráter. Ainda assim, as vibrações que emanam de seu
trabalho, o particularíssimo latejar de seu ritmo, o modo peculiar com que ela trata a matéria e se entrega ao
real, isso sim, fica marcado. É o mundo autónomo de Guita — como o coração, ou os intestinos, órgãos sobre
os quais não exercemos controle algum — que se conecta com nosso mundo autónomo. Uma comunicação
que, talvez, dispense até as palavras, possa se realizar só na imagem crua.

Por exemplo: a repetição, a compulsão a reproduzir e reproduzir, é algo que desvela uma parte muito secreta de
Guita, e ela não precisa falar a respeito disso para que isso se explicite. Está em seu trabalho: longas séries,
todas muito parecidas entre si, e o que se destaca, no entanto, não é a semelhança, mas as sutilezas que
afastam as várias partes, que as distinguem. No entanto, sem a repetição a sustentar o caminho, sem o cliché,
sua arte não seria possível. A compulsão move Guita, compulsão à repetição, em uma mulher que admite que,
nas poucas vezes em que precisou ficar um tempo sem trabalhar, sentiu-se cheia de angústia. Ela não trabalha
em uma, mas em várias telas ao mesmo tempo; não usa uma técnica, mas várias de uma vez só. Não planifica:
deixa os materiais dispersos a sua frente e é no contato com eles, na manipulação, que alguma coisa a empurra
para lá e para cá e a leva a fazer. O mais inquietante: na hora de armar suas exposições, Guita carrega consigo
essas repetições e essas “manias”. Elas não estavam ali, portanto, só como veículo para se chegar ao objeto
ideal, como exercício de acerto e erro. Rascunho e obra, para Guita, são uma coisa só. O fazer, o ato, é a
própria obra. Como Guita não tem objetos ideais, nem está preocupada com a beleza ou a perfeição, adota
como objeto não um objeto, mas a busca de um objeto que, ela sabe de antemão, não encontrará. E nesse
movimento compulsivo, nessa constante rotação em torno de um tema inacessível, nesse ciclone, que Guita faz,
enfim, sua obra.

É uma procura ardente, mas delicada, na qual se destaca um surpreendente lirismo. Lirismo que está também
na mulher, que é capaz de parar no meio da rua para observar um céu, ou uma folhagem, e ali se deixa ficar,
encantada pela beleza que a natureza lhe oferece. Repetição, entrega ao acaso (e o acaso costuma ser,
também, o terreno do igual), compulsão que é um tipo de perseguição, mas de perseguição apaixonada. Uma
busca, sim, fadada ao fracasso, na qual o objeto buscado sempre escapará. K é talvez porque escapa que a
procura se torna tão visceral.

A arte de Guita Soifer deve ser vista, então, não como obra, mas como ato. O ato, mais que o objeto, é seu
destino. Ato que, para Guita, é um ato de sobrevivência, e não um divertimento, ou uma vaidade da “vida de
artista”. Ater-se ao momento, auscultar aquilo que é, reter o breve instante, “o átimo”, como dizia Clarice, é não
ter uma visão iludida a respeito da obra; mas, ao contrário, encará-la também como algo sem forma fixa, como
um sopro mais que um objeto soprado, como um objeto que não se deixa fisgar. A arte, para Guita, está mais no
verbo que no substantivo, ou no adjetivo. “Parece que a mão é mais inteligente que a cabeça”, ela diz. No caso
de Guita, a visão em vez de fixar, vem filtrar. Filtrar para abrir caminho para que o instante, enfim, se mostre,
uma manobra em direção ao ato — em que a própria artista, como a aranha em sua teia, fica enredada. É essa
Guita que, sempre retida na turbulência da obra, tenta falar daquilo que, na maior parte das vezes, fala por ela.

Guita nunca escondeu sua imensa dificuldade na hora de montar exposições. Primeiro, porque exposição é isso
mesmo que a palavra diz, um lugar no qual o artista deve não só expor, mas se expor. Há um desnudamento,
inevitável, que a incomoda. Numa mostra, os objetos ganham um aspecto estático que, Guita entende, não
corresponde a sua natureza de metamorfose. No entanto, é aquele material exposto que ficará gravado na
memória do outro. O outro captará “a obra” em dado momento e em dado lugar, a obra (mas a palavra será
mesmo essa, obra?) ilhada num recorte do tempo e do espaço. Só que nunca estamos ilhados nem no tempo,
nem no espaço, em vez disso estamos sempre metidos em conexões e relações, e em movimento, e em
transformação. “Quando exponho, não sei para que, para quem e por
que exponho”, diz. A relação da arte com o outro é sempre individual, cada arte é recebida por uma pessoa de
uma forma. Então, não existe arte fixa. Toda exposição, em consequência, é uma tentativa de deter aquilo que
não se detém.

A artista não tem controle algum sobre o que expõe, nem pode ter, nem poderia desejar ter. Além do que, Guita
parece temer que, ao fixar seus objetos numa sala, eles acabem perdendo aquele movimento interior, aquele
“por acabar” que é, no fim, o que os define. A tendência do visitante, e do crítico, é dá-los, sempre, como
prontos, até porque aquilo que ali está é, no fim, tudo o que ele vê. Acontece que o trabalho de Guita Soifer é
uma meditação sobre as coisas, meditação essa feita não com pensamentos organizados, nem sequer com
pensamentos, mas através do manipular das próprias coisas. Agora que lida intensamente com a fotografia, ela
se dá conta disso. Um fotógrafo, por mais que escolha o ângulo, a luz, a figura, a moldura, nunca sabe o que
está fotografando. Há um movimento autónomo que se guarda não só na máquina de fotografar, mas também
no próprio objeto e no modo como ele se deixa captar pela máquina. O artista pode querer uma coisa, mas o
que aparece é sempre outra. E é esse outro que interessa a Guita Soifer. E aceitar esse outro. É tomar esse
outro como seu.

Não que, com isso, Guita perca seu estilo, o estilo permanece, mas permanece justamente naquilo que tem de
mais inconstante: as provocações, as provações, o martelar da obsessão, da qual Guita retira sua energia
criadora. “Por mais que eu modifique os elementos da técnica, sei que sou sempre fiel a mim”, ela diz.
Meditação sobre o universo, já que para Guita as coisas compreendem tudo o que existe, sem discriminação de
feio ou bonito, atual ou arcaico, sujo ou limpo. “Quando trabalhei com o holocausto, pensei muito nisso — que o
que me interessava era o ser humano não aceito, que não está dentro dos modelos exigidos, que resiste ao
poder, como foram os judeus para os nazistas”. Aquele que medita não delimita. Aquele que medita, se abre.

O espelho que interessa a Guita Soifer não é o objeto lido e polido, que pretende refletir ponto a ponto, ainda
que invertido, o real. E, ao contrário, um objeto sujo, curvo, insubmisso, sem moldura, que não aceita a imagem
que lhe é oferecida e dela faz o que bem entende. Seu interesse pelo espelho é, no fundo, um interesse pela
cegueira. É um espelho absurdo, que tenta deter não a figura, mas o processo, daí ser um espelho estilhaçado,
que se repete e repete ele também e, em vez de clarear seu suposto objeto, o esconde mais ainda. E assim,
nessa manobra contínua — c aqui podemos pensar nos carros manobrando no estacionamento, logo ali fora —
Guita faz sua meditação. Manipula a matéria, e esse manipular é sua forma de meditar. Guita não busca
soluções, mas caminhos, daí suas obras se conectarem umas com as outras, tornando-se umas partes de
outras, numa grande teia que abarca todo o ateliê e até ela mesma. Assim, o artista se coloca “dentro” da obra,
e não do lado de fora. É do espontâneo que Guita tira o duro. É da leveza que retira a exatidão. E sem recorrer a
conceitos, “sem pensar”, que ela produz pensamentos.

A matéria, para Guita, é a melhor expressão do mistério. Ela a toca como o sujeito que, desnorteado, interroga
um enigma. “É valorizar o processo, e não o fim”, insiste. No fundo, Guita quer nos mostrar que tudo aquilo que
tomamos por fixo, o olhar, a clareza, a fotografia, a gravação, a reprodução, a arte, tudo está irremediavelmente
contaminado pela instabilidade. “A fotografia é uma forma de mentira”, ela diz. A arte, em si, é mentira, e é
verdade também. É algo que mostra e oculta, que agarra e solta, e que por isso nos lança na perplexidade. É
um objeto que não se deixa deter e que não se cansa de espantar. Como está nos versos de John Ashberry: “O
todo é estável na/ Instabilidade, um globo como o nosso, repousando/ Sobre um pedestal de vácuo”.