Sobre a mostra de Guita Soifer – Tempos Transversos

Angelika Sommer

Nomes servem às mostras como referência, vinculando, da mesma forma, obras artísticas a um contexto
específico. A artista brasileira Guita Soifer, por seu turno, conferiu intencionalmente um título composto ao
trabalho apresentado em Berlim, no Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha – ICBRA. Com o primeiro
segmento, “Tempos Transversos”, ela antecipa o tear delicado e permanente entre os fios da História, do
presente e do futuro, demonstrando o fenômeno do diálogo entre os diferentes aspectos do tempo, abordado em
sua obra. A ampliação do nome, entretanto, sendo uma construção ilógica,· constrange a compreensão: lápides
marcam um espaço, simbólico e, no alcance coletivo, funcionam como suporte da memória; seu uso genuíno
dá-se em oposição ao esquecimento e à volatilidade da existência. Em que medida, afinal, as obras
apresentariam referência a este segundo dádo? “Um túmulo no ar” afirma-se, enquanto constitui um monumento
à atemporalidade. [1, reflexão acerca da imagem peculiar colhida destas palavras, traz à memória o poema de
Paul Célan, Fuga da Morte: “cavamos uma sepultura nos ares aonde o espaço não falta.” De repente, escura e
rasgada, a expressão de Célan ao extermínio de judeus nos campos de concentração: o leite negro da aurora
consumido dia após dia – as pás usadas para abrir a terra à morte, violinos e sua doce e sombria melodia; os
projéteis de chumbo, a fumaça subindo pelos ares, a sepultura nas nuvens.

Guita Soifer, contudo, apresenta em suas obras, um horizonte disposto a abrir-se para além das lembranças e
dimensões históricas balizadas pelo passado nazista. Seu tema, orbitando em torno da memória humana, quer
ser entendido em sentido universal e é conduzido através de muitas perspectivas, vozes e midias de imagem.

A obra de Guita Soifer contém pinturas, gráficos, fotografias, instalações e objetos. A sala de mostra, grande e
alta do ICBRA, sedia um amplo espectro destes trabalhos. O espaço parece caldo fora do tempo e difunde uma
frescura solene. As peças são arranjadas em um alinhamento, por vezes, militar. Em contrapartida, legendas,
habituais responsáveis pelo estabelecimento de uma certa ordem interior – estruturando o tempo ou conferindo
a obra um enquadraniento de orientação, aqui serão buscadas sem sucesso. Todas as obras carecem de titulo
ou mesmo dados sobre técnica e dimensões. Sem essas definições, as interpretações surgem espontâneas e
poderão ter seu conteúdo modificado, de passagem pelo espaço “memória”.

Livros são considerados memória de longo prazo para o registro escrito, para as imagens, histórias e toda a
sorte de conhecimentos colecionados. No livro, a lembrança abre-se como que reanimando o passado. No
discurso artístico de Guita Soifer, onde as dimensões do tempo são experimentáveis, esta oportunidade será
oferecida de uma ‘forma especial. Cada um de seus livros-abertos tem uma própria história. Na “leitura” dos
desenhos e gravuras abstratos, feitos em peças de tecido depauperadas, tateamos traços do passado. Entra-se
em paisagens de sala interiores e exteriores.

Os desenhos das capas foram executados em tecidos como cetim e feltro, velhos, papéis de aspecto simples,
tipo branco ou brilhante – em amarelo, verde, vermelho e laranja. Os formatos variam entre livro de bolso e
infinito. As margens das capas aparecem parcialmente cobertas. Em seu interior, um fio dourado costura, em
ziguezague, a integridade já impossível. Para o fundo da pintura, a artista usa papel cetim, imitação de
pergaminho, fibra grossa, e outros papéis suaves que oferecem uma visão tão enfumaçada quanto tátil.

A tendência ao desfrute literal destes objetos erodidos será interrompida, apenas, graças às surpresas
anunciadas ao olhar do espectador, pelo resto da mostra.

Um livro pesado, com capa de cetim, deixa entrever uma caligrafia antiga. Qualquer esforço de leitura esbarra
nos incontáveis pares de óculos quebrados, deixados caoticamente, sobre as páginas abertas. Outros
significados surgem – ainda além da legibilidade – quando Guita desconstroi estruturas da lingua escrita. Neste
sentido, veremos constelações de letras e números negros, em letraset, descrevendo largas órbitas circulares
em páginas de pergaminho. As marcas da escrita, serão sempre percebidas corno parte da expressão espiritual
de uma época. O uso de letraset confere intencionalmente, atemporalidade e anonimato, ao conjunto. Ao
mesmo tempo, revela-se a preocupação com os princípios de caos e ordem no espaço. Módulos de letras,
comunicam-se com partículas finas – as quais tocam ou cobrem. A superfície, com efeito, estará carregada com
energia e campos de tensão ritmicos. Cada letra ou sílaba oferece urna realidade textual mínima e indicam –
com referência à poesia concreta ¬imperfeições e marcas de desintegração do sistema idiomático. O volume de
papel pergaminho oferece à vista, um confronto das consecutivas “páginas de letras”. Textos fragmentados
nascem forçados pela busca de um sentido que não se completa.

Guita Soifer trabalha com objetos do cotidiano que, embora deslocados da sua função, não disfarçam as muitas
cicatrizes desde o sítio original. São objetos metálicos, arranhados, gastos e cobertos em parte por ferrugem
que ela reclassifica, sagrando mediante o esforço de sua arte. Constam nos livros-objeto, a relação entre
exterior e interior – fazendo menção ás relações entre guardar e dissimular – ganha relevo. Seus recipientes
parecem cápsulas do tempo, usadas corno leito: numa caixinha de cetim entreaberta, encontra-se uma chave
comprida e pesada; uma aldabra de latão, coberta com cera transparente, será encontrada em outra caixinha,
desta vez de metal, decorada com espelhos em seu interior. Quatro pedaços de arame poderão também ser
vistos, condicionados em papel de seda, dentro de um baú corroído.

Parece que a artista quis opor-se à natureza material do ferro, ameaçada pela desintegração. Alguns destes
objetos, Guita transformou em metáforas à memória. Prorongando a sua duração com cera,. conferiu-Ihes um ar
místico. A interferência eievou, como resultado, suas peças à relíquia e fez dos signos de lembrar, uma
referência com importância e energia especiais. Também a inclusão de espelhos – de cuja natureza pode-se
dízer, simultaneamente, vazia e ocupável, forma aquela passagem no contínuo espaço-tempo, desejoso de ser
preenchido. Neste contexto, são resíduos de um inteiro recuperável aperias na memória do espectador. Da
mesma forma, o caráter dos “sapatos-objeto”, de ferro corroído, será de fragmento. Dois pares de restos de
sapatos insinuam passos, sobre uma·baixa mesa de vidro. Solas e partes do corpo, fazem vezes de vaso para
seu conteúdo, que ‘consiste em pequenas e angulosas peças de. cristal. Em cada uma, adornos de metal
indicam a origem esplêndida de lustre antigo. As peças transparentes transbordam levemente o envase e, no
interior translúcido de todos os sapatos, urn elemento vítreo de cor vermelha. Como sapatos servindo de
recipiente, retomam a idéia do baú de relíquias.

Walter Benjamin, em suas teorias histórico-filosóficas, argumentou contra a idéia de uma História linear, que
somente reconhece a História dos vencedores, em favor de uma “historiografia da recordação”. O ato de lembrar
ocuparia-se ela “memória dos sem-nome”, ou seja, daqueles que não deixaram traços, garantindo-lhes
sobrevida.

Guita Soifer constrói, através dos meios da arte, formas de recordação, correspondentes às idéias de Benjamin.
Suas instalações e objetos, em especial, revelam um parentesco próximo do recordar e do acordar referidos,
como na queda do sonhador ao mundo dos despertos em uma peça musical. Serve como exemplo do vigor
expressivo da artista, uma grande instalação de parede que consiste em apenas duas quadras de tecido. Estas,
fixadas com pregos robustos, enfrentam-se distando 10 metros, uma da outra. De perto, identificam-se com
cobertas de bordados delicados. O tamanho remete a função anterior de cobrir um casal, mesmo que agora
sejam visíveis marcas de destruição. No lençol branco em frente, pregos enferrujados, espalhados
desordenadamente, imprimiram manchas que lembram traços de sangue. Ficou intacto apenas o centro do
objeto, que permite a visão de uma quadra branca. Tal imagem encontra-se também no pendanto, no outro lado
da sala – este, porém, sendo inverso, tem no centro, entornado pelo branco do tecido, densas marcas de
ferrugem, lembrando uma grande ferida aberta. Ambos objetos representam experiências extremas de violência
física, psicológica e sexual. Na projeção do espectador, transformam-se em campo de batalha, capaz de referir
o holocausto. Os donos destas peças, pessoais e íntimas, permanecem no anonimato. Sua presença e ausência
são evocadas, na mesma medida, através da carga simbólica dos objetos. Como nas fotos das costas da artista,
os objetos oferecem à mostra, um artefato de recordação.

Quando relacionados, os vários momentos da exposição evidenciam suas interdependências. O trabalho com
diferentes meios torna possível à Guita, ocupar-se formal e tematicamente de processos complexos, que não
exigem uma conclusão no sentido convencional. Assim sendo, temos como natural os discursos fragmentário e
ambíguo, na pintura da artista.

Centenas de quadrados, com 10 centímetros de lado, são o ponto de partida de uma ampla instalação. Numa
nova adaptação – desta vez na parede – Guita Soifer, segue somando caráter a éada uma das salas de mostra.
Com a reiterada renúncia de informações técnicas, este momento inscreve-se como variação do principio no
qual, a perspectiva do objeto deve, ficar livre de qualquer definição.

O vermelho grande, absorve os sentidos do espectador ainda ao longe. Ordenados a formar um retângulo, os
quadros pequenos parecem presos provisoriamente – às vez.es alinhados um pouco para a direita, outras à
esquerda, ou ainda ajustados mais rigidamente. Alguns tocam-se, outros mantêm um pequeno espaço dos
quadros vizinhos. De perto, percebemos suas cores e texturas diferentes: um vermelho frio, repentinamente,
muda para preto. Ao lado, um vermelho aquecido através de acre, inquieta a visão. Os quadros coloridos e
abstratos apresentam diferentes graus de densidade. Seu caráter é de uma certa melancolia e compactação
material. Superfícies de pigmentos opacos passam a áreas de tinta óleo, gretadas e cheias de bolhas. Apesar
da rigidez, ao final das contas, fica a impressao de um conjunto cheio de movimento. Esta dinâmica específica
não oferece certezas ao olhar do espectador. A aparência de uma construção instável da imagem aumenta,
através de alguns campos livres, que atraem a atenção automaticamente, atrapalhando o olhar. Um prego fixado
na parede marca algo que esteve ou ainda não está. Estas lacunas, na opulenta festa da cor, indicam falta ou
perda de um ente espacial ou psicológico. Simultaneamente, as questões a propósito do modo de ver e criar as
próprias imagens. são animadas. A reunião de impressões, comunicando presença e ausência, apresenta-se
como estratégia, que transforma o concluso em incompleto.

A mostra organizada por Guita, desta forma, afronta a clareza da memória e posta-se “transversal” ao tempo.
Armadilhas à recordação e à percepção do tempo estão colocadas de forma a tornar difícil, para o espectador,
esquivar-se.