Difícil distinguir entre o que somos e o que queremos ser
Embaixada do Brasil em Assunção – 2018
Exposição da artista Guita Soifer
Ticio Escobar
Fiel à sua vocação contemporânea, a obra de Guita Soifer é caracterizada pela combinação de textos e imagens e a interseção de diferentes suportes, procedimentos técnicos e meios artísticos. A natureza multimídia de sua obra se expressa tanto na diversidade de recursos quanto no uso de meios tradicionais e modernos (gravura, pintura e escultura) e propostas baseadas em técnicas atuais (fotografia, audiovisuais, fotocópias, etc.). Esta simultaneidade de meios produz anacronismos e rupturas típicas da montagem contemporânea.
A obra exposta por Guita Soifer na mostra comemorativa dos 25 anos da Bienal Internacional de Curitiba desenvolve três conceitos (gravura, livros e textos poéticos) cuja conjunção mostra o potencial da montagem deste trabalho. A montagem baseia-se precisamente na articulação das diferenças e na criação de novas imagens a partir da conjunção de formas e meios discrepantes ou, pelo menos, desiguais. Essas diferenças são tanto de natureza técnica quanto estética e conceitual: essas linhas não se movem paralelamente de maneira autônoma, e sim diagonalmente em direções diferentes, muitas vezes se cruzando. Embora expostas separadamente, o próprio fato de seu confronto em uma única proposta expositiva ativa o conceito da montagem, promotora de sinergias, conflitos e alianças entre imagens díspares.
Quanto ao primeiro conceito, o notável domínio da gravura por parte da artista a leva a explorar além da própria gravura, que atua como mediadora entre a imagem gráfica e a plástica, oscilando entre a linha e o traço (da incisão, da impressão, da escrita) e entre as diferentes técnicas e suportes envolvidos em sua obra: as incisões na matriz de metal, as formas e texturas no papel, as sombras densas da tinta, a presença e ausência de cor e as reiterações produzidas pela impressão; todos esses componentes mobilizam a linguagem da gravura, contaminam-na e a impedem de se concentrar em si. A própria abstração gráfica (que nunca é totalmente abstrata) se move dentro dos limites dessa linguagem: suas imagens parecem se referir a embriões da escrita, a signos remotos, elementares, carregados de impulso visual. Essa proposta culmina no paradoxo de uma escrita ilegível, figura cara ao pensamento atual, tornando essa ilegibilidade em um desafio, em uma série de outros possíveis significados.
Os livros correspondem ao segundo conceito de seu trabalho, sendo resultado de montagens de diferentes materiais, imagens e concepções. Estão entre o visual e o legível, entre o objeto real e sua representação. A própria figura do livro já implica a tensão imagem-texto; esta dupla, essencial na paisagem contemporânea, promove o apagamento dos limites claros entre a escritura e o imaginário e entre as artes visuais e literárias.
O livro é, em princípio, um suporte à linguagem escrita, mas sua própria materialidade, intensificada no caso do trabalho de Guita Soifer, adquire uma presença tão volumétrica e espacial que não pode deixar de ser considerado um objeto; neste caso, um objeto oferecido ao olhar: um objeto visual. Nesta exposição, os livros são montagens de diferentes materiais conflitantes entre si. Também são espaços de encontro entre o meio e a mensagem que carregam; a obra nos lembra que os livros não são apenas suportes de letras, mas também de ilustrações: eles potencializam tanto as superfícies materiais da inscrição quanto as imagens e signos inscritos.
Mas a inscrição nunca poderá ser completada: não há coincidência plena entre o seu suporte e as formas que tenta fixar, porque a imagem que abriga a escrita, especialmente a escrita poética, nunca pode ser totalmente reduzida a um signo. Não só porque seus traços são enigmáticos, mas porque se referem a eventos que, por definição, excedem os limites do registro escrito. Os redutos poéticos das palavras, assim como as escritas furtivas que as imagens guardam, buscam um sentido além dos significados nas oscilações entre o signo e a imagem. Oscilar entre as duas margens permite assumir a diferença, reconhecer e exceder o limite, o que está além da linguagem. Para Derrida, a leitura poética supõe o ilegível, pois leva a identificar os silêncios e o outro lado da escrita nas falhas: as entrelinhas e o excedente às margens. É por isso que os emaranhamentos, colisões e curtos-circuitos entre a palavra e a imagem não devem ser entendidos como um princípio do absurdo, mas sim como uma ocasião para novos sentidos.
Seguindo essa direção, chegamos ao terceiro conceito que integra a mostra: aquele traçado pela escrita poética, entrecortado por falhas da linguagem, interceptado por forças vindas de fora do círculo da representação. Estes textos se conectam com as gravuras e livros e, assim, fecham e abrem a mostra. No primeiro texto, a gravura é a “necessidade da cor”, assim como a ausência de tons e o trabalho dos “sulcos e traços”. Por isso “o papel fala novamente da passagem dessa temporalidade”. Essa passagem conecta secretamente a escrita com seus fantasmas: as imagens. No segundo, os livros são considerados “fortes referências à memória”: densa e complexa memória que o artista tenta reconstruir a partir de sua obra. E já se sabe que o trabalho da memória é movido pelo desejo e, portanto, novamente habitado pela falha, pelo que não é dito; pelo imaginado, talvez.
A memória aponta igualmente para o passado e o futuro: para o que éramos, o que somos e o que queremos ser. Portanto, no título da exposição (Difícil distinguir entre o que somos e o que queremos ser), devemos procurar não uma figura, e sim uma pista. A questão se instala em um limite, entre duas margens que podem ser confrontadas, mas não reconciliadas em uma resposta definitiva. Os grandes e pequenos eventos de nossa experiência ordinária não têm limites contundentes com objetivos estabelecidos pelo desejo ou marcados pela vontade. A diferença entre o que é e o que deveria ser ou o que desejamos que fosse não pode ser determinada de maneira absoluta. A ordem da linguagem não cobre a lacuna aberta entre o real e o ideal; assim como não é suficiente para liquidar a dívida entre o que somos, o que imaginamos e o que registramos. Os livros, as grafias e os poemas não podem revelar a verdade final, mas ao se cruzar, podem invocar a memória e indicar pistas do sentido esquivo que obceca poetas, artistas, escritores, dando por um instante um vislumbre do sentido, infiltrado entre a rotina da existência cotidiana e o breve brilho do que queremos ou deveríamos ser.