TRAVESSIAS

Museu Municipal de Arte de Curitiba – 2022

PROCURA-SE. PROCURA-TE.

Carolina Loch

Em tempos com fácil acesso a uma câmera fotográfica, é difícil imaginar um mundo em que para ter a imagem de alguém era preciso aquietar-se por horas, e até mesmo dias, para que um artista pudesse executar um retrato. O retrato aparece incansavelmente ao longo da História da Arte. O como, o por quê e o para quem fazê-los não esgotam as mentes dos pesquisadores e críticos, tentando sempre entender as funções, técnicas e contextos deles.

Nossa imagem fora do espelho ou do olhar do outro, registrada em outra superfície, era rara até pouco tempo. É com a popularização da câmera fotográfica, não muito depois dos anos 70, que passou a ser mais fácil olharmo-nos através das lentes. Com a fácil reprodutibilidade da nossa imagem, chega também o excesso de outras imagens para fins publicitários, informativos e de expressão. As ruas passam a ser tomadas por grandes outdoors que quase cegam nossos olhos para elementos não artificiais. Iconofagia é o termo que Norval Baitello Júnior dá para explicar esse fenômeno em que há um inchaço de imagens, disputando a atenção do nosso olhar.

O ser humano devora imagens e é devorado por elas. É isso que Baitello Júnior nos conta em “A era da Iconofagia”. Há uma fissura do ser humano por tornar-se imagem, registrar cada momento, seja ele banal, sensível e até de tragédias documentadas por cinegrafistas amadores em seus dispositivos móveis. Guita Soifer é atenta a esse fenômeno, mesmo que não o chame por esse termo em suas obras. Tanto quanto o retrato marca a história da arte até aqui, o antirretrato marca a arte contemporânea. O esfacelamento, ocultação, destruição do rosto na imagem compõem uma atualização na história, repensando nossa relação com nós mesmos e com a incansável necessidade do registro.

Mas o que se vê quando o que se há pra ver não é comum aos olhos? O que chama atenção além do estranhamento? E mais ainda, quando? Quando alguma imagem ainda é capaz de nos colocar em estado de fratura no meio do cotidiano?

A instalação de Guita Soifer, com aglomerado de imagens que provocam e discutem o estado delas mesmas – de exagero – colocam o espectador em uma experiência, no mínimo, dupla. A primeira por ser pego de surpresa em meio a um caminho, que mesmo pertencente ao museu, é também para muitos, de passagem. A segunda, de experimentar ver o que não se vê: a sensação de ausência de algo. Uma imagem pode ser “a presença de uma ausência e seu oposto, a ausência de uma presença”. Os lambes colados na parede, sujeitos a destruição gradativa com o tempo ou agressiva por intervenção humana, com um sujeito oculto, causa estranheza suficiente para não passar despercebida.

Não tem como fugir do que Bauman muito antes de nós já pensou: a consistência e continuidade de identidade são incoerentes com um mundo que “propõe o flutuar das identidades e que nos imerge incessamente na situação de estar totalmente ou parcialmente deslocado por toda parte, e não estar plenamente em lugar algum”. Viver essa identidade líquida que a contemporaneidade exige, faz com que os artistas, tal como muito bem faz Guita, resolvam urgentemente questões que nos tirem da inércia de conviver passivamente com o excesso de imagem que se perde no nosso olhar.

O mundo de fácil acesso às imagens, levou embora nossa imaginação. Hoje tudo se comprova com uma busca rápida, tudo se responde. Nos antirretratos de Guita, quem é que conta a história? O que reflete no espelho da personagem de costas? Há quanto tempo está ali? Quem quiser procurá-la, começa por onde? Enquanto coube à artista enxergar o mundo de um jeito e transformar isso em obra, fica ao espectador o convite de completá-la a partir de suas inquietações e silêncios. O que fica dessa instalação diz muito mais sobre quem a vê do que quem a produziu – grandes são os artistas que conseguem chegar com facilidade nesse lugar,

Se uma imagem não te olha, como você olha essa imagem?

Procura-se o que falta

Procura-te no que falta.