De relance, mapa, areia

Por Adolfo Montejo Navas, Outubro de 2020

Quando um livro caminha para uma falta de gênero e confessa essa indistinção, já impreca ao leitor para uma viagem diferente, a compartilhar a aventura de que o texto, como matéria-prima, pode ser qualquer coisa. Longe portanto de compartimentos estanques e mais inscrito na lei generosa do híbrido, onde certos livros possuem seu próprio arame sobre o qual passar, atravessando sem olhar muito para baixo, ou então olhando de esguelha, de relance. A essa estirpe de obras corresponde um antecedente matricial, Água viva de Clarice Lispector, que em seu fluxo narrativo adivinhatório, se situa entre o diário, a ficção, o ensaio, com não poucos meta- aforismos também inscritos nas páginas, formulando um pensamento nômade, oscilante, muitas vezes abismático. Textos, de Guita Soifer, vive da mesma circunstância, de não saber o destino verbal – e não se importar com essa questão –, apesar das aparências de poemas com cesuras justificadas ao eixo do centro, axialmente, de remeter assim a uma lírica pensante que abraça a prosa, o aforismo, a anotação, já que a empreitada literária passa por ser indagação, pesquisa existencial, ou seja, espiritual. Porque nos cinco livros reunidos sob o mesmo humilde título genérico (só com a tentação de ser subtitulados diferentes, Dual, Das impossibilidades, Círculo do pensar, Silêncio entre falas…. ), o que se abriga é uma mesma inquietação que perpassa os volumes, para tentar nomear algo fugidio, um mistério cada vez mais insondável a medida que avançam as linhas, as imagens, as reflexões…, a valentia de umas anotações enigmáticas que nunca deixam de ser líricas, como escrita atenta, portanto, às afinidades insuspeitadas da linguagem, assim como os seus arranjos: “dúvida / dádiva / da vida / o rito”. Uma poética de criação, em suma, que não quer separar nada, nem os versos do diário, nem o pensamento da imagem (“intuição, pensamento puro”), algo que já recomendavam os pré-socráticos, diante de espaços-redomas-imaginários binários, segregadores, coisificadores. Muitas polaridades se esfarelam nestes livros do mesmo livro, pois são registros de passagem e então outras valências semânticas se dinamizam como local de exploração: “meios que conduzem ao verdadeiro conhecimento da solidão”: o lugar do outro, o cotidiano, o não tempo, a própria criação, a escrita como área de atuação limítrofe e secreta – escrever o que não se fala – e que serve de mapa, na força tarefa de mapear o indizível; o que se junta a uma certa atração pela infinitude, uma ordem que não se conhece, diria a autora e artista off the record. “O silêncio entre falas, um processo difícil, / o desejo é cortá-lo com palavras / sabendo que são só sons barulhentos”. Os exemplos se acumulam como em um radar e o seu lado oriental se manifesta nesses poemas às vezes estalactites, filiformes: “O cheio desejo do vazio / pois no caos me completo ”, já que se coligam a sua vez com outra impronta formal geral, estrutural, aquela dos textos justificados ao meio, ao redor de seu eixo coluna, insinuando nesse cio verbal uma procura tão sinestésica quanto ontológica: “lidar com o desconhecido /e não quem vir a ser” ou então para dizer: “o ser deve ser o ser de outra expressão”. Em Textos, há várias coordenadas em jogo com escalas diferentes, que relacionam as preocupações macro e micro de nossa existência – essa difícil correspondência –, assim como há palavras que se isolam no verso como balizas, chafarizes, pedras cantonais. Até para uma evidente procura de alteridade, precisamente agora, no confinamento pandêmico, que não faz outra coisa que aguçar o dramatis personae que espraia este conjunto de livros feito com bastante tempo acumulado e anterioridade. “Olhar do outro / distante, / neste limite / eu sou o outro”. Assim, neste vaivém do sujeito, de seu aventurado self, contemplado em seu espelho móvel e também abissal, se reflete uma cartografia do íntimo, onde na escuridão do eu, há sempre um pulsar, um silêncio inquerido. Neste espelho diário a artista declara: “vivo em função do invisível” (se diz no livro 5). Na entrega de Textos há uma liberdade rara, em aberto, que abole a rede de segurança – como ilustra em parte a visualidade que acompanha, de partes/acentos de desenhos esparsos e aleatórios que são marcas, pegadas de gravura, sinais – , há um desafio singelo de Guita Soifer que promete certa corda bamba, um passeio equilibrista no qual o sujeito que enuncia, fala, nomeia está em certo meio – fio (não só estilisticamente falando), pois são vários os mistérios em jogo, em construção, as miragens que produz todo deserto, todo livro de areia.