Guita e a Criação da Presença

Paulo Herkenhoff

Este livro de Guita Soifer constitui-se numa síntese do universo de sua gravura através de uma seleção de obras
recentes aparentemente díspares. O sentido e a coesão do conjunto serão apreendidos a partir da compreensão
da diferença que suas experiências gráficas guardam entre si, o que se constitui em mecanismo através do qual
a artista opera a linguagem.

Guita Soifer põe em marcha dispositivos visuais de constituição da presença da imagem. A artista grava na
maneira tradicional, que neste livro admite em alguns casos seu alinhamento na tradição aberta por Hayter de
valor o gesto, o traço, a linha. A intervenção gráfica pode ser também variada coleta e reaproveitamento de
materiais como uma economia de matrizes, signos, gestos e escrituras, em que tudo isso acaba ganhando
contornos específicos e, no conjunto, constituem uma imagem que é mais do que a soma das partes. A artista
atua segundo um processo ambivalente de se mostrar e esconder. Guita Soifer aponta seu projeto para igualar
os extremos da expressividade, em que ausência (matrizes achadas) e afirmação (o gesto de construção da
imagem) se equivalem, porque a meta é ativar os mecanismos da percepção. É preciso apontar para o tempo
específico de cada obra, de articulação de deus elementos.

São,pois, muitas variadas as operações pelas quais Guita Soifer põe em marcha a constituição de sua
linguagem. Neste livro, as páginas gravadas abrem o leitor o universo de nexo entre as etapas da leitura. O
sentido do livro, enquanto um conjunto de imagens articuladas, está em enunciar a demanda mais do que em
definir o campo de respostas.

A repetição de pequenos gestos aponta para o lugar que surge da ponta do instrumento de incisão. São
pequenos gestos de feitura da linha repetidos e individualizados até um ponto em que a reiteração constitui uma
idéia de fatura gráfica. Terminam por se constituir num processo de territorialização. O espaço em algumas
gravuras é o lugar do gesto confirmatório da individualidade. A operação é a de acumular traços e administrar
sua presença, sem pretender a saturação do espaço, mas como busca do equilíbrio de carga de energia na
constituição daquilo que chama de presença gráfica. A imagem subjetiva conjectural é a de um território que
surge como uma pele, que se faz de cicatrizes do ato de ferir a matriz e o papel, e paisagem. No sentido
bachelardiano, aqui está a vontade matérica da artista. A afirmação do sujeito não coincide com o virtuosismo
técnico, mas de sua capacidade de construir mentalmente a presença gráfica como um lugar.

O verdadeiro gravador, escreveu Gaston Bachelard, começa a sua obra com um devaneio da matéria. É um
trabalhador. É um artesão. Tem toda a glória da trabalhador. O pensador inglês conclui afirmando que a gravura
é parte da história das lutas contra a matéria. A fenomenologia Bachelardiana apóia-se no atuar empírico em
que a linguagem se funda, neste caso, na vontade matérica do sujeito como ação do Homo Artifex. É como se
Guita Soifer confirmasse intensamente a assertiva através de uma grande produção gráfica. E, no entanto, a
artista também colide com esta afirmação. O raciocínio da Bachelard não se ajusta totalmente, porque, como já
disse, o jogo da artista é revelar e ocultar o sujeito autor.

Encontra-se em algumas gravuras a subjetividade que desvela e afirma o autor; noutras encontramos um
ocultamento e, aparentemente, sua negação como se a presença da imagem fosse dada pelo mundo. Apesar da
arte e da artista, enquanto detentora de uma artesania, isso ocorre quando Guita Soifer passa da fatura para a
apropriação de pequeno fragmentos encontrados como matriz gráfica e conjuga estas imagens num conjunto. A
incisão gráfica é um procedimento que não admite arrependimentos. O que pode parecer erro ou falta, é na
verdade, escolha. Guita Soifer não nega a idéia do devaneio, antes aponta para um outro devaneio, agora no
campo imagnético. E aquilo que ainda poderia existir como devaneio matérico, está deslocado da matriz para o
suporte. O corpo, sobre o qual a vontade matérica atua, é, então, o papel.

Palavras soltas e letras esparsas ferem o papel entre marcas de gravação da tradição das operações com
ácidos e incisões. Ocorre, em certa instância, uma atuação do acaso. Muitas palavras articulam-se como um
jogo de dados. A leitura é busca incessante de um significado para essas palavras, cuja escritura parece ter um
duplo movimento de ser tanto a construção quanto a dissolução do significante. A escrita adere ao espaço do
suporte como um desejo de constituição do sentido, porque a comunicação não suporta a ausência do código. A
tensão construída nessas gravuras é um território mental, localizado entre a opacidade e a transparência da
comunicação.

Um grupo de gravuras de Guita Soifer aponta para uma tradição da modernidade, que é a incorporação de
objetos encontrados na estrutura da obra de arte. Sendo assim, uma gravura de Guita Soifer pode ser o lugar de
coleta de objetos. São pequenas chapas de metal recortadas que, ao serem impressas, tornam-se formas
encontradas. São restos de metal como uma área fora do espaço de uso. São como campos do desperdício.
Sua única possibilidade de valor se mede por seu peso como metal. No entanto ao imprimi-las sobre o papel,
Guita Soifer produz uma surpreendente presença hierática. A transmissão da imagem desprende essas formas
de sua última fronteira: a corporeidade. O que era um pequeno pedaço de metal surge como uma imagem, cuja
presença foi repotencializada pela estranheza. Ocupa, solitariamente, o centro do papel. O olhar fixa o centro.
São silhuetas, conformam uma relação ambígua entre a ausência de algo que passou ou índice de uma
presença precária. Algumas assemelham-se a formas arquitetônicas básicas, em que a frontalidade vela a
espessura do monumento.

Aqui será possível fazer uma referência aos desenhos de Ester Grispum, em que a existência do espaço
define-se como lugar de figuras arquiteturais anunciadas em devaneio da linha gráfica. O monumento, na obra
de Grispum, busca sua existência entre a transitoriedade da linha e a sólida implantação dos volumes hieráticos
ou arcaicos seres, memórias de uma escritura, como na série “ O arco e a Caverna” (1988). As imagens gráficas
de Guita Soifer – negras e graves – também remetem a idéia de uma arquitetura ironicamente monumental,
reconduzindo o sentido do silêncio que paira sobre aquelas formas. A natureza do silêncio transforma-se
mudando a própria qualidade dessas formas. Nesse processo de ressignificação, Guita Soifer trabalha sobre as
possibilidades expressivas do ato simples. Ela atua como se produzisse o resgate de uma afasia: transformação
do mutismo em silêncio.

Algumas gravuras de Guita Soifer são um território econômico em que o resto, como ausência de valor é
resgatado. O que nada era recupera uma serventia inicial, que é a de produzir alguma visibilidade.
Aparentemente essa seria a última possibilidade desses restos. Os pequenos fragmentos, pequenas peças de
metal também encontradas, são dispostos no que se parece com a articulação de um diálogo visual.

Guita Soifer explora a possibilidade de articular uma nova totalidade: o espaço constelares. As linhas diagonais
imaginárias de tensão, partindo de um fragmento ao outro, produzem um sentido coeso para o espaço – tecem o
espaço. Simultaneamente, experimenta-se uma rarefação da intervenção gráfica. O valor já não será econômico
mas passa a residir na recaptura da diferença, ali onde já nada mais parecia ter qualquer sentido ou significado.
Nesse processo de territorialização, há uma busca do equilíbrio, do encontro do número exato capaz de
tensionar e constituir o novo espaço em um presença em si.

Se as ressonâncias da partes resistem ao olhar e constituem uma presença gráfica significante, poderíamos
falar agora de uma outra dimensão desses jogos. São espaços constelares líricos. O percurso do olhar é o curso
de uma escritura, que, não pertencendo ao campo da palavra, já não é aqui silêncio. Parece se avizinhar de
uma outra linguagem expressiva, confirmando a existência de um trânsito de sentidos. É fato que a gravura tem
um apelo ao tato. Muitas vezes o olhar háptico percorre os sulcos e as cicatrizes que a matriz grava no papel.
No entanto, nessas gravuras de pequenos fragmentos, estaríamos diante de experiências gráficas em que, na
tradição de um Klee ou de Kandinski, o signo visual desloca-se para outro sentido e busca a condição de
música. O olho escuta, já se disse. O artista russo, em seu livro ”ponto linha plano”, discute as possibilidades
expressivas da gravura em metal na constituição de estruturas mentais, menciona ressonâncias de linhas e
sonoridades duplas no plano das conexões e correspondências entre arte e música. Se esses fragmentos
impregnam-se no papel como pontos de forma variadas, Kandinski pode, então oferecer uma chave que nos
ajudaria na compreensão dessas composições de Guita Soifer. Assim, “A sonoridade primeira do ponto é
variável segundo suas dimensões e formas”, cabendo à artista a regência de uma coloração relativa.

O estilete da escrita em braile fura o papel da gravura, grava ponto a ponto uma mensagem ao ato e para uma
legibilidade que se resolve na ausência da visão. Guita Soifer desloca sua obra para outros territórios sensoriais.
A carnalidade dessas gravuras formada pela trama do papel recebe inscrições em braile, como cicatrizes. Essas
gravuras de incisão e de texturas, encontram outros limites da legibilidade. É premente a dupla referência aos
sentidos e ao ato. De novo devemos tratar aqui o deslocamento do percurso vital para uma condição háptica na
obra de Guita Soifer.

A cegueira tem sido um extraordinário mecanismo para a compreensão do estatuto dos limites e da potência do
olhar, o ato e a visão foram operados como um jogo dramático em escultores tão distintos como Rodin, Degas e
Brancusi, bem antes, o Diderot iluminista, em sua carta sobre os cegos, tratou da educação dos sentidos não
tendo feito propriamente uma apologia da cegueira. É conveniente reiterar que como Diderot, alguns artistas
lidam com a educação dos sentidos. A potencialidade poética dos limites do olhar povoam a arte brasileira,
sendo Cildo Meireles uma matriz com obras como “Espelho Cego” e “Eureka Blindhotland” se confirmarmos a
importância do olhar, é necessário qualificar este olhar e compreender a diferença. Para Guita Soifer gravar,
mais do que uma ferida na matriz, é um projeto de repotencialização da percepção do olhar e do tato em torno
de uma nova legibilidade. Guita Soifer está entre aqueles artistas para os quais fazer construir e pensar se
equivalem.