“Nesta Complexidade do ser, sou” Conversa com a psicanalista e crítica de arte Bianca Dias
Transcrição da fala de Bianca Dias durante a roda de conversa da exposição “Nesta Complexidade do ser, sou” que ocorreu no dia 29 de Outubro no Centro Cultural Sistema FIEP. O texto foi adaptado para maior compreensão do leitor.
[…] Alguns pontos do meu encontro com a Guita e do que eu achei interessante, a partir da exposição e também a partir da visita que eu fiz hoje ao ateliê dela. Porque eu conheci a Guita, tenho que contar como foi, foi muito interessante, porque eu vim dar um curso em Curitiba e vim falar da minha pesquisa na universidade, que é uma pesquisa sobre a ideia de biográfico na arte, e com essa ideia de vida e arte da biografia, é atravessada por uma ideia da psicanálise, da constituição do Eu. Então não é uma ideia de vida e obra como causa e efeito, mas como a possibilidade de rastros da vida que estão atualizados na obra e da obra se atualizando pela vida.
E aí eu conheci a Guita num curso que eu dei falando sobre essas questões, e eu falei sobre artistas que ela gosta muito. A gente começou uma conversa e falei da Naomi Kawase e falei da Agnes Varda. E depois quando eu terminei o primeiro dia de aula ela veio falar comigo, eu achei fantástico isso. Apresentei um filme da Agnes Varda, “Os catadores e eu” que é um documentário muito bonito. E apois, no filme “Dois anos depois” ela vai recolher outros depoimentos a partir desse primeiro documentário. Em “Os Catadores e eu” ela trabalha com uma ideia, do Walter Benjamin, do artista como o lixeiro,”glaneur”. Um artista para o Walter Benjamin é esse que recolhe os restos da cultura, e refaz algo com isso. É aquele que está lidando com os dejetos, com o disfuncional, com aquilo que não tem uso na cultura. Então a Agnes Varda sai nessa empreitada, nesse documentário “Os catadores e eu” como uma catadora. Ela usa como referência a obra “As Respigadoras”, e ela se coloca como catadora desses dejetos desse resto da civilização. Ela vai a feiras ela vai atrás de pessoas que vivem na rua e pegam os restos. Ela vai atrás de uma artista que trabalha a partir de resíduos e vai conhecer um chefe que trabalha com restos de uma certa forma, com cascas, transforma isso em alta gastronomia. Tem um texto de um psicanalista lacaniano, Jacques-Alain Miller, que se chama “A salvação pelos dejetos” e é aonde ele vai falar da arte, que a arte é o lugar da salvação pelos dejetos, disso que resta de uma operação da cultura e que você pode sublimar, fazer algo com isso, criar a partir disso.
Então eu conheci a Guita nesse contexto e ela veio falar comigo dos “Catadores e eu”, falei mas você é uma catadora também, pois o seu trabalho está o tempo todo lidando com essa dimensão do vestígio, do resíduo, do que resta de uma operação. Então essa ideia do “glaneur”, que é essa ideia do lixeiro pelo Walter Beijamin, vai atravessar o trabalho. Quando eu cheguei na exposição, já conhecia o trabalho mas, fiquei maravilhada como que outras camadas foram se colocando a partir da exposição e quando eu fui ao ateliê, eu me lembrei de uma obra que eu gosto muito que é “O ateliê de Giacometti”. E quando eu cheguei, a primeira obra da exposição, eu falei “gente mas é impossível não lembrar do Giacometti, aquelas esculturas que estão ali”. E aí nessa relação, eu pensei no livro do Jean Genet depois de uma visita ao ateliê de Giacometti. Ele ficou fascinado pelo ateliê, pela forma como a vida estava impregnada na obra do Giacometti, esse espanto, esse assombro que o Giacometti mostra nas esculturas, como que isso premiava a obra dele. Nesse livro do Genet ele vai se aproximar então com uma intensidade poética muito grande da obra de Giacometti. Então eu fiquei pensando, foi o meu espanto hoje na visita ao seu ateliê, um espanto diante de uma beleza e você falou num dado momento na ferida, quando eu te perguntei “Sua a obra trabalha a questão do trauma não?”. Você disse “sim mas pela via da memória”, memória como um elemento afetivo que vai tratar essa dimensão do trauma. E ai eu lembrei de um trecho de um comentário do Jean Genet sobre o Giacometti, que evoca essa dimensão da ferida. E aí ele disse “A beleza tem apenas uma origem, a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo, para uma solidão temporária porém profunda. Há portanto uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos de miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser, e mesmo em todas as coisas para iluminar as coisas”. É a relação que eu estabeleci com o seu trabalho, passa muito nessa convulsão, por essa vertigem ao redor da ferida, que é um trabalho muito bonito, mas é um trabalho que tem um senso de gravidade também diante da existência, da construção do Eu, da relação com o outro.
Então quando eu cheguei e vi esses totens maravilhosos, dessas fotografias, desse trabalho de sobreposição das fotografias suas e da sua mãe, eu te perguntei “Nossa ela ta ali, mas ela tem um peso” você falou “Eu coloquei Chumbinho” eu achei isso muito bonito. Eu coloquei chumbinho para isso ficar de pé. Eu falei, gente é impossível não pensar na força disso, um elemento da vida e da morte que circunscreve a relação da obra. E como você faz isso com uma sutileza, percebendo as nuances dessa relação com o outro, e como você trata questões, digamos pessoais, mas você caminha da ideia de eu ao outro. O próprio título da exposição “Nesta complexidade do ser, sou” essa torção que a sua obra opera. Você está falando de questões muito pessoais, mas não de maneira direta, nem didática. E como isso encontra eco no outro, nas nossas feridas, na nossa dimensão traumática. Embora eu faço também uma relação com aqueles óculos que estão no ateliê, que são uma série de óculos quebrados, uma coisa corroída. E aqui também em muitos momentos eu falei você tem uma relação com Christian Boltanski, um diálogo, têm relação do trauma na obra dele. Mas como ele trabalha também, essa sutileza que seu trabalho tem. Tenho uma obra que eu trabalhei no meu mestrado, que são os arquivos sonoros, e que estão numa ilha remota do Japão. Então ali eu acho muito interessante como ele faz esse caminho, que eu acho que seu trabalho faz, do Eu ao Outro e como ele começa sua pesquisa a partir de algo dele. Na Baró em São Paulo teve uma pequena exposição, onde ele colocar as fotos dele, num processo muito parecido também, em diálogo com o seu, meio analógico, uma foto de infância e como ele colocaria ali o barulho do coração dele associado à questão da Shoah. Esse trauma que foi para ele a questão do pai e da perseguição do pai, e o pai era cardiopata grave, que viveu escondido durante muitos anos. Ele nasceu no contexto da liberação de Paris, então viveu a infância toda com essa questão o perseguindo, e o pai mesmo um tempo depois vivia debaixo da escada escondido, ele conta isso. Então ele vai colocando essa questão do trauma na obra, mas caminhando para o outro, então os arquivos sonoros, ele parte de uma questão dele com pai, e é uma obra que é um “work in progress” até hoje. Ele vai passando pelo mundo coletando o som do coração de várias pessoas que estão nessa ilha, de Teshima no japão, uma ilha remota. Tenho o meu arquivo sonoro lá de várias pessoas do Brasil, porque veio ao SESC essa exposição. Então se eu quiser ir nessa ilha, e escutar o barulho do meu coração ou do coração de algum amigo que está lá e eu posso escutar mas eu também posso escutar o barulho de todos os corações, cada um com a sua dor, cada um com sua ferida e isso cria um som meio enigmático no ambiente, e que mostra essa relação delicada, do Eu ao Outro, que eu acho muito interessante pensar nessa coisa biográfica. Como essa dimensão biográfica pode ser inventada pela psicanálise, pela própria ideia de Ru em psicanálise. Também tem uma obra no seu ateliê que eu falei “Nossa sei se já gesto é muito interessante”. Você fez um gesto que é um rolo e tem uma impressão do EU, do eu que some, que marca e desaparecem. Então o Eu para psicanálise não é uma coisa estanque e fixa, um lugar garantido, é uma construção, uma construção da relação com o outro, na relação com nossos traumas, com essa ferida que nos constitui. Então acho que é um trabalho que você está tratando questões muito singulares mas que fala também a todo o mundo, justo por essa questão.
Coloquei também essa imagem do livro de artista e me lembrei do livro de carne de Arthur Barrio, que é uma imagem muito forte, porque eu senti uma coisa quase corpórea, uma materialidade, em alguns momentos lembrou um diálogo até como uma das obras do Nuno Ramos que ele chama de pintura mas que são objetos. Não sei se vocês conhecem, são obras gigantescas como se fossem livros de artistas gigantes que ele vai colocando ali resíduo do ateliê, e as vezes despenca mesmo algo da própria obra. Eu trabalhei alguns anos na formação do Instituto Figueiredo Ferraz que é uma coleção de arte contemporânea de um colecionador de Ribeirão Preto, ele tinha essas obras. Uma dessas obras, que o Nuno chama de pintura mas que são esculturas, são inomináveis. E de vez em quando a gente estava fazendo alguma coisa e aquele barulho enorme e a gente falou desabou algo da obra. Eu achei maravilhoso que a gente conversou sobre isso, né Guita, no seu ateliê hoje, se fala de vez em quando cai alguma coisa, tanto que você arrumou o livro quando chegou aqui. E esse processo que você deixa que aconteça, nos totens também quando chegou, você disse “um quebrou”, eu falei “isso aqui estava quebrado?” você disse “não mas se quebrou”, valorizando isso. Essa dimensão da precariedade, do erro e você falou “eu mantive quebrado”, tem um vidro que estão quebrados eu achei isso muito interessante, diz muito também sobre seu trabalho. Como você assume essa dimensão da precariedade no seu trabalho.
A gente conversando, você falou das mãos, que é uma questão central no seu trabalho, e eu falei nossa eu havia anotado essa questão da mão para te dizer, porque tem um historiador da arte, um ensaísta, Henri Focillon, e ele tem um texto que foi publicado em português pela revista Serrote do Instituto Moreira Salles, foi traduzido e se chama “O elogio da mão”. Ele vai falar nesse texto, como essa questão da gestualidade, nós conversamos até sobre isso hoje, essa questão do gesto, como que isso foi se perdendo, como que a arte pode ser um lugar de retorno do gesto. A gente vive um esvaziamento do gesto e a mão é o primeiro momento de um gesto, da construção de um mundo. Tem uma psicanalista que é a Julia Kristeva, ela fala que a criança na construção do Eu e que é muito interessante o papel da mão. Então a mãe é que disse que segura o bebê que vem nomeando esse corpo para criança, aqui está a sua mãozinha, aqui tá seu pezinho e aponta. Então esse gesto de tanto de construção do Eu, do sujeito, também está no gesto de construção do mundo. A mão é esse elemento, a mediação, e na arte tem uma função importantíssima, o lugar da mão do gesto na própria história da arte. Tem vários registros, eu lembrei de um artista italiano que faz várias fotos de mão, o Bruno Muari, que é muito interessante. Talvez você possa falar um pouco mais sobre esse lugar que você disse que é muito importante para você.
Essa ideia que eu pensei em articular a partir do biográfico, essa dimensão do íntimo, do gesto e da memória. Eu acho que são três pontos muito importantes no seu trabalho: o íntimo, o gesto e a memória. A memória você coloca como um ponto central e o gesto também, que vão reescrever esse lugar do Eu e do Outro a partir do título mesmo da exposição, você fala disso, dessa escrita do Ser e do Sou. Também eu pensei nessa dimensão do retrato. Você trabalha muito com fotografia, e com um retrato. Claro que é uma ideia de retrato reinventada. Uma ideia do retrato que você reinventa completamente e fiquei querendo saber de você depois se eu pudesse falar um pouco sobre essa ideia do retrato, que é uma ideia também muito cara a história da arte, que atravessou a história da arte. Eu achei muito contemporânea à maneira como aquelas imagens, você de costas, e a maneira como o tempo, que é também um outro elemento central de seu trabalho, está presente ali A ferrugem que incide sobre o trabalho, essa coisa corroída, borrada desgastada, que é a própria incidência do tempo na subjetividade. E aí eu anotei uma fala sobre essa questão do Henri Focillon, que ele fala “O elogio da mão” e ele diz que “são necessárias as mãos para que se produza uma experiência de mundo. Não há arte sem a dimensão da mão, as mãos são capazes de solicitar, arrastar o espírito, fazê lo travar contato com o peso das coisas e da materialidade, ou numa fórmula que anuncia a obra tardia de Merleau-Ponty, quando esse toma distancia um pouco da fenomenologia, ele disse: “A possessão do mundo exigiu uma espécie de faro tátil tocar as coisas na visão que desliza pelo universo e pelos objeto”. É por isso que pro Focillon, eu completo, a mão é esse órgão privilegiado da experiência do mundo, da arte, dessa prática do gesto que a arte encarna”. Então ele vai nesse livro, nesse ensaio “O elogio da mão”, amarrar essa espécie de desenvolvimento de um estilo da marca de cada um a partir da mão. Fazendo esse ensaio pensando nesse convívio, que é um convívio que ele fala que foi esquecido até mesmo às vezes na história da arte, onde foi muito importante, e como isso hoje foi esquecido. Ele traz a dimensão do artífice, do artesão.
Você disse “Eu gosto de fazer, eu gosto de montar e eu gosto de estar junto” como que isso, esse gesto da feitura, da fatura, com que isso é importante, traz de novo a dimensão desse gesto, dessa gestualidade, que é uma gestualidade perdida, é outra questão para pensar também, como que isso vem se colocando na arte hoje. Então eu acho que eu trouxe esses pontos para a gente conversar também, porque senão fica uma fala solitária. Gostaria de te ouvir também, ouvi as pessoas o que elas pensam do seu trabalho, como que elas pensam isso.