In the memory space

Museu de Arte de Joinville – 2019

A Guita como ela é

Teca Sandrini

Conheci Guita Soifer por volta de 1974, quando eu ministrava um curso de resina e poliéster no Centro de Criatividade de Curitiba. Em seus olhos, uma magnética vontade do mundo. Em seus gestos e mãos, a fome do criar. Toda ela era ânsia de fazer, de descobrir, de moldar e descortinar. Neste momento, é com olhar distanciado, mas nunca distante, que mergulho na trajetória incansável de uma artista voraz. Como acontece à eufórica personagem sem nome e sem rosto de Clarice Lispector em seu Água Viva, me acompanha no momento desta escrita uma alegria tão profunda e uma tal aleluia!

Ainda lembro das mãos habilidosas, a delicadeza no trato com os objetos. Já naquela época, entendi que seus sentidos são instrumentos a serviço de algo maior que ela mesma. A necessidade de perseguir aquilo que não se pode descrever apenas com as palavras que formamos com as letras do alfabeto já estava lá. A obra de Guita é uma forma de conexão com o incomunicável, com o que fica na garganta e não sai. Não sai porque é toda ela uma forma de existir, de habitar, de pertencer. É claro que essa mesma necessidade se expressou de outras formas na medida em que foi crescendo como artista, mas ela já existia desde ali. Provavelmente, desde muito antes.

Gostar de Guita é fácil, mais fácil ainda se espantar com sua arte. É uma artista que se entrega inteiramente ao material com o qual escolhe trabalhar. Na pintura, abstrai o cotidiano, dissolve o tempo. Na fotografia, faz quebra-cabeça dos segredos do corpo. Em seus livros de artista, costura passado e presente com a linha da lembrança e neles registra a possibilidade de futuro. Por falar em livros, Guita trabalha como quem escreve, ou como ela gostaria de escrever. Transforma cores e suportes em palavras que ecoam em frequência captada pela intimidade de cada observador.

Como amiga, posso dizer que Guita sempre foi fiel e honesta à sua visão de mundo, sem nunca ludibriar ou enganar os olhos de quem a lê, seja em telas, vídeos, fotografias ou gravuras. A vontade presente em seus trabalhos se liga às suas dúvidas. É em buscar dúvidas que ela desafia a mesmice. Sua vida é movimento constante em direção às profundezas da imagem e do sentir. E ela sente como poucos são capazes, seja a cor, a matéria ou traço. Faço minhas as palavras de Paulo Herkenhoff, ao dizer que ela está “entre aqueles artistas para os quais fazer, construir e pensar se equivalem”.

Sempre jovem, sua mocidade não depende da idade. Ela é perene feito o tempo. O tempo e a coragem sempre foram suas medidas. Com eles moldou sua própria memória. Uma memória que conta segredos distantes e deles fez o grande caminho da sua vida.

Do bom uso da solidão

Guita não teme a solidão, este colossal monstro moderno, pois faz muito bom proveito do que Merleau-Ponty, ao se debruçar sobre a vida e obra de Cézanne, chamou de “liberdade do solitário”. Não a teme porque busca ao redor de si o frescor das descobertas que faz em exercícios que exigem certa abstração. E como sabe abstrair! Mas sem nunca perder o chão e o rumo, importante dizer.

Seja nos livros que devora ou nas palestras e conferências que costuma frequentar, Guita é solidária à solidão. Não solitude no sentido de abandono. Afinal, não somos todos nós máquinas ontológicas produzindo sentidos de modo recorrente? De forma singular, Guita consegue a façanha de transfigurar emoções em significados palpáveis em tudo o que produz.

Seu olho é certeiro, bem como seu espírito. Pelo exercício constante de observação do cotidiano, ela cria sólidas pontes que conduzem o observador para uma profunda reflexão. O espectador necessita mergulhar. Chegar até o fundo para assim desvendar um mundo de afetivos registros que se abre a novas interpretações e relações. É capaz de ampliar a experiência humana em caminhos novos e inesperados. Em suas telas e livros, por exemplo, nós coexistimos e pertencemos.

O que aguarda o público nessa mostra são verdadeiras pulsações estéticas. Basta se deixar envolver pela experiência do toque e da observação.

Beleza emprestada

São muitos os diálogos que artistas, críticos e especialistas do mundo inteiro travam sobre a relação entre arte e beleza. Para uns, a arte faz uso do belo para criar um recanto onde o espírito pode repousar e se exilar do caos da vida cotidiana. Para outros, a beleza na arte tem a ver com transgressão, espanto e radicalidade. Já eu, tenho o costume de dizer, talvez até a exaustão, que a arte preenche os cantos da alma com a beleza emprestada. E os trabalhos de Guita, frutos do seu ímpeto na busca de algo que a linguagem sozinha não alcança, emprestam beleza à alma do mundo.


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