Texto de Bianca Dias

Por Bianca Dias

A obra de Guita Soifer – uma artista que se desdobra em muitas – se mistura ao vivo da existência com um caráter insondável. De seu trabalho sobressai algo precioso, uma espécie de abalo semântico, uma fissura que se estabelece na relação com o real. Em uma língua indecidível e indecifrável, Guita recusa o sentido, perfura o saber e assume a desarmonia e a incongruência como eixos de uma invenção singularíssima.

         Suas atividades – aquarela, pintura, gravura, colagens, instalações – foram sempre atreladas à ideia central de uma vida engajada na arte: uma biografia inscrita em obras em que a artista se desmancha e se refaz, numa escrita que nasce do contato com a ferida, com um corpo que se expõe ao mundo e nunca se encerra, tocando a dimensão do inacabado. Desalojada e desabrigada de uma organização fixa, de nomes e títulos, seu trabalho é o reflexo de uma vida tão tocada pelas coisas a ponto de também tocá-las, e delas guardar uma vibração íntima. Assim segue Guita, escrevendo seu percurso como artista a partir de uma experiência-limite, em que os rastros da vida são atualizados na obra, enquanto a obra atualiza a vida.

          Nessa experiência viva e pulsional de existir dentro e fora da obra, conjugando rigor e fruição, ela aposta num território onde o escondido e o indizível afloram junto da imagem e a explodem por dentro, revirando o mundo e propiciando a aparição de um fluxo que vagueia e tenta encontrar seu ponto de ancoragem na indeterminação, sabendo que toda história pessoal é também aquela de toda a humanidade. A ideia de biografia se reinventa para além dos lugares canônicos, articulando em seu centro a própria dispersão de si e sustentando, a partir do íntimo, do gesto e da memória, uma poética muito singular que se desloca do singular ao comum, num lugar movente que rejeita as representações prontas e reescreve o lugar do eu na obra a partir de um descentramento.

          Sustentando o território do íntimo como uma ética, ela desenvolve um caminho que traz como marca um inacabamento constitutivo, que excede sempre aos sentidos prontos e, justamente por isso, possui uma potência de repensar mundos. Um sentido, como na poesia, sempre por fazer.

          No livro “As falenas”, Georges Didi-Huberman diz das borboletas da noite cujos movimentos incertos surgem a partir de um fundo de obscuridade, uma interioridade de onde irrompem para, logo a seguir, desaparecerem, como um sulco que se escreve indelével, entre aparição e desaparição, entre aquilo que fixa as imagens e algo ziguezagueante e instável. Para Didi-Huberman, temos na arte uma imagem inquieta como a dança de um psicótico ou o vestígio do santo sudário, pontos de partida delicados e, no entanto, contundentes, para uma investigação sobre a ideia de uma inscrição singular que, me parece, também dialoga com a noção de “fora” estabelecida por Maurice Blanchot como uma potência das superfícies, prática e experiência que abriga a possibilidade de fundar mundos. A obra, como podemos constatar no trajeto de Guita, está sempre na zona indecidível da experiência da intimidade revelada, em que, para mostrar alguma coisa, é preciso que algo da aparência se dissolva e, para que se apreenda ou capture algo, é preciso eleger também uma perda.

          A presença inquieta e curiosa de Guita faz lembrar a cineasta Agnès Varda e o filme “Os catadores e eu”, que captura a ideia fulcral do trabalho da artista. A partir de um quadro de Jean-François Millet, de 1857, o filme tem como ponto de partida a definição de glaneur. No gesto de filmar e recolher restos do mundo, a cineasta, empunhando sua câmera, se transforma ela mesma em catadora de imagens. Varda recupera o que foi jogado fora e transforma a dimensão do resíduo e do dejeto em obra de arte.

          Walter Benjamin trabalha com a ideia do artista como um lixeiro, um glaneur: o artista é aquele que lida com os restos da cultura, refazendo algo com isso. É alguém que maneja o desfuncional, o que não tem uso. Para Varda, não podemos perder uma pergunta de vista: o que fazemos com nossos restos?

          Em “Dois anos depois”, novamente como uma catadora, Varda segue recolhendo outros depoimentos e os efeitos do primeiro filme, numa lógica também usada por Guita: mesmo depois de expostos, alguns trabalhos são modificados, enquanto outros são construídos a partir de recortes de trabalhos anteriores e se realojam no mundo. Se Varda vai a feiras livres e ao espaço rural, Guita recolhe resíduos de seu próprio entorno, de descobertas feitas ao tatear a vida, ao sabor de sua inquietação febril, também com uma catadora.

          Henri Focillon, no belíssimo ensaio “Elogio da mão”, afirma que a possessão do mundo exige essa espécie de faro tátil. Ele diz:

“A visão desliza pelo universo. A mão sabe que o objeto é habitado pelo peso, que é liso ou rugoso, que não está soldado ao fundo do céu ou de terra com o qual parece formar um só corpo. A ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam. Superfície, volume, densidade e peso não são fenômenos ópticos. Foi entre os dedos, no oco da palma das mãos, que o homem primeiro os conheceu. O espaço, ele o mede não com o olhar, mas com a mão e com o passo”.

          Focillon aborda a questão da gestualidade e como a arte pode ser o lugar da convocação do gesto. Ele afirma que são necessárias as mãos para que se produza uma experiência de mundo que o gesto encarna. Todos os gestos – do artífice, do artesão, do artista, até os gestos de amor e feitura de ações cotidianas, do gesto mínimo da letra aos gestos imensos. A gestualidade é pensada como uma ética a ser reinventada e invocada.

          No ateliê de Guita, com camadas se colocando e se revelando, me lembrei – de um golpe só, como num efeito-clarão – do livro “O ateliê de Giacometti”. Mais tarde, quando me vi diante de suas esculturas, foi inevitável que não fosse conduzida diretamente à obra de Jean Genet, escrita a partir de um encontro fulgurante. Quando Alberto Giacometti encontrou o francês pela primeira vez num café, em 1954, impressionado por sua fisionomia, desejou retratá-lo. Em seu livro, Genet se aproxima da obra de Giacometti com uma intensidade poética muito grande. Essa relação, na fascinação pelo ateliê, pela forma como a vida estava impregnada na obra de Giacometti, o espanto e o assombro revelados nas esculturas: foi o que também vi na obra de Guita. Em seu ateliê, impossível conter a perplexidade e não se espantar diante de uma beleza que é também uma ferida.

          Como revela Jean Genet sobre Giacometti, Guita trabalha a questão do trauma pela via da memória, que evoca essa dimensão da ferida:

“A beleza tem apenas uma origem, a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo, para uma solidão temporária porém profunda. Há portanto uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos de miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser, e mesmo em todas as coisas, para que ela os ilumine”.

          E é pela via da convulsão e da vertigem que a obra de Guita se estabelece, pois diante da beleza há um senso de gravidade em face da existência. É incontornável não ler em seus trabalhos algo de uma relação profunda com o judaísmo.

          Sigmund Freud foi um judeu não-religioso, mas que manteve, em alguma medida, a ética e a moral judaicas, orgulhando-se do judaísmo até o final da vida, carregando a marca do humor enquanto estratégia de sobrevivência, e a diáspora do exílio como um caminho para a alteridade. Impossível desprezar esse aspecto estruturante na obra de Guita.

          A psicanálise surgiu nesse terreno que incorpora algo da cultura judaica, como a do pensamento anti-idolátrico com uma iconoclastia muito própria criando uma subversão permanente. A própria hermenêutica psicanalítica tem traços comuns com a interpretação talmúdica, a arte do midrash. Textos diversos são aproximados por ligações inesperadas, às vezes porque uma só palavra semelhante ocorre entre duas passagens. É nesse registro que funciona a interpretação analítica e, penso, há muto dessa contaminação em um trabalho que navega no rio da polissemia, que fazem os sentidos se multiplicarem, condenando sempre a leitura à incompletude. Na obra de Guita, o tempo da rememoração reatualiza permanentemente o passado, na perspectiva de um futuro infinitamente aberto em um processo interminável, em que nenhuma interpretação pode ser tida por definitiva, e em que reina uma temporalidade própria, a par do tempo linear e irreversível do mundo.

          Há outra premissa: o fato de que a cultura judaica é, por excelência, a cultura do exílio, da estrangeiridade, do nomadismo. Essa errância também se sustenta no trabalho de Guita, que se desloca por todas as fronteiras, num pensamento avesso a identidades fixas. Jacques Derrida considera a judeidade uma expressão que funda um ato, uma maneira de tornar-se outro. Trata-se de um devir, movimento que implica o sujeito numa desindentificação, na quebra de modelos fixos e imutáveis e no exílio ininterrupto de si mesmo. Em outras palavras, a judeidade vai além do judaísmo, assim como em Guita, que se deixa atravessar por essas questões sem se deixar encerrar por elas.

          Nessa travessia, a artista encontra sua singularidade e seu estilo também no rigor da palavra. Nos últimos anos, os escritos e o deslocamento para a palavra visam o incontido de significação, designando o ponto de corte que sustenta o enigma da marca que interroga, procurando no exílio mais recôndito das letras a escrita do inconsciente, aquela que, na escuta da pluralidade dos sentidos da pulsão, se curva à primazia da letra como aquilo que não há como fixar numa significação ou numa imagem. E, convém lembrar, o efeito dessa modalidade de escrita é produzir um dizer que ultrapassa o dito.

          Sua escrita se inscreve de outra forma no trabalho plástico, como nos totens de  fotografias – suas e de sua mãe – sobrepostas, em que o elemento que preenche o espaço interno e os mantém de pé é o chumbinho, um material que traz consigo toda uma rede de significados, um elemento da vida e da morte que circunscreve a relação da obra. O trabalho diz dessa violência com sutileza impressionante, percebendo as nuances da relação com o outro, e como se engajam as questões mais íntimas numa ideia de ir do eu ao outro. O próprio título da exposição, “Nesta complexidade do ser, sou”, opera uma torção que é fundamental. No suposto retrato de si, algo sempre escapa, há um efeito de sentido, mas também de buraco. A palavra retrato vem do latim retratctus, que significa tirar para fora, como se no gesto de se retratar fosse possível revirar o sentido de identidade e história, sempre com elementos densamente experimentais. Como se a matéria das obras estivesse sempre próxima do acidente, do acaso, do ensaio. Guita, que trabalha muito com fotografia e retratos diversos, subverte essa dimensão do retrato. Claro, é uma ideia de retrato reinventada, como quando a artista se posiciona de costas, criando uma zona de opacidade na imagem. E, junto, a ferrugem – essa coisa corroída, borrada, desgastada, que é a própria incidência do tempo na subjetividade – incide sobre o trabalho, tensionado por uma poética muito própria, invocando um aspecto aurático.

          Para Walter Benjamin, a aura emana de um enigma que envolve o objeto, como se este estivesse encoberto por um véu translúcido. A distância intransponível, imposta pelo véu, interdita o desvelamento total do objeto e arma um jogo dialético entre a revelação e o ocultamento, diante do qual o sujeito se enreda, procurando aproximar-se do que está fora de seu alcance. Aquilo o cerca e lhe escapa, é fugidio. Quando envolvido pela aura, o alcance do objeto se dá pelo desvio, de forma indireta e, ainda assim, jamais haverá sua captura total e completa. Trata-se de uma experiência possível do impossível: ser e não-ser, um mistério que é parte inexorável da ideia de beleza em sua obra. Não se trata de experimentalismo sem direcionamento ético, mas de assumir a  precariedade como força, o gesto ensaístico como abertura, pois um lugar de sujeito, sabemos, só surge como efeito de um ato. Em Guita, um ato biográfico encontra eco no outro, na dimensão traumática da própria condição humana.

          Nesse sentido, seu trabalho também dialoga diretamente com o de Christian Boltanski que, evocando a questão da Shoah, colocou em exposição uma foto de infância junto ao som de seu coração. Para Boltanski, que nasceu no contexto da libertação de Paris, o trauma foi uma questão estruturante. Essa questão é colocada em sua obra, que caminha para o outro, ao comum, como em “Arquivos do coração”, um trabalho inacabado que consiste em coletar batidas de coração pelos lugares por onde passam suas exposições. As batidas de coração coletadas de pessoas do mundo estão em Teshima, uma remota ilha do Japão, como uma espécie de anti-monumento, uma caixa de ressonância que cria um enigmático som no ambiente.

          A ideia de um eu no trabalho de Guita Soifer – como a identidade, para a psicanálise – estabelece um delicado diálogo entre o gesto, a memória e a invenção. Diante da ferida que nos constitui, surge uma escrita de vida esboçada em livros de artista, em que há uma presença quase corpórea, uma materialidade que inclui o acidente. Na exposição dos totens de fotografia, um vidro quebrado no transporte foi mantido como marca desse acaso, incorporado à obra e destacando a dimensão da precariedade e do erro. Em sua obra, há um tratamento de questões psíquicas que passam pela constituição da subjetividade, promovendo um desvio, uma margem de recuo.

          Seu ateliê é um campo minado de escombros e, entre tantas coisas, algo inquietou meu olhar: uma massa branca desaba ao chão de forma orgânica e visceral, levando a um ponto precioso em que o ser humano é devolvido ao que tem de mais irredutível: a solidão. À maneira de Kurt Schwitters, Guita cria seu ateliê. O artista alemão inventou  sua Merzbau – Casa Merz – uma espécie de ateliê/habitação com um processo de reapropriação do mundo e redimensionamento de elementos incorporados a uma espécie de caverna repleta de protuberâncias e toda sorte de objetos que coabitavam um espaço de inquietação perpétua. Em seu ateliê, Guita cria figurações e desfigurações, inventando um espaço que se aproxima de uma epifania. A beleza de sua obra surge do efeito de uma espécie de simbiose entre a solidão da artista e a solidão do mundo. Assim, à maneira de Genet no ateliê de Giacometti, adentra-se no universo de Guita.

          O espelho – assim como no filme “As praias de Agnès”, de Varda – cria aparições e desaparições no trabalho de Guita. A matéria corroída da vida aparece em vários suportes, desde livros que encarnam a dimensao do milagre, até a rarefação do ar fotografada como matéria visual – uma atmosfera poética que adensa a relação com a imagem. Em muitas obras, uma espécie de borramento cria uma vertigem no tempo. Entre a imagem de si e a imagem do outro, um caleidoscópico de intensa delicadeza lembra as monotipias de Mira Schendel.

          Para Guita, a arte é o meio de circulação entre morte e vida, desaparecimento e renascimento, um meio de se estabelecer os alicerces dessa memória testemunhal, sem reduzir o dispositivo do arquivo, nele inserindo suas intensidades pulsionais, restos, fragmentos e resíduos que marcam e criam histórias. Seu próprio corpo indócil se coloca nos trabalhos de maneiras diversas, como resistência que pode se dar através da reinserção de uma materialidade qualquer numa manobra contra a assepsia e o apaziguamento.

          O que se destaca em sua trajetória é o lugar dos restos frente a um saber domesticador, uma ética da solidão que diz respeito à própria divisão do sujeito, pois o instante do ato de criar é solitário, ainda que o outro permaneça no horizonte.

          Da materialidade onde a vida se deposita, rearranjam-se aspectos com imensa fineza estética: cor, traço, resíduos que muitas vezes aparecem em processo de erosão. Trata-se de trabalho múltiplo, aberto ao campo poroso da existência, arte e vida articuladas de maneira única e vertiginosa, com sempre algo da transgressão e do espanto. A impressão que se tem é de que, no calor da ideia, a artista se armou de um material eficiente, capaz de expressar seus pensamentos e sensações no momento exato em que tudo isso borbulhava. O pensar em ação congela-se em cada uma das imagens construídas. Os materiais utilizados são suficientemente eficazes para acompanhar a velocidade de ideias inquietas e fulgurantes, como se a dar voz à matéria para formar um todo tão frágil e quebradiço quanto as figuras esculpidas e pintadas por Giacometti.

          O trabalho de Guita é marcado por uma incessante curiosidade e pela inclusão de um corpo indócil, um corpo que se rebela à docilização, ao mesmo em que seu imenso respeito pelos objetos é decisivo, pois cada um tem sua própria beleza, pois único, e nele há a gloriosa e inigualável solidão de cada ser. Na materialidade em que a vida se deposita e na dimensao estética vertiginosa e transgressiva, Guita experimenta o exercício da liberdade. Suas obras mostram que, por trás da precariedade, encontra-se uma diversidade simbólica que tem a força de despertar. Seus últimos escritos e experimentações com a palavra poética mostram o quanto a artista se arrisca sem medo em diferentes territórios da linguagem.

          Entre mostrar e esconder, na punção precisa que faz da carnalidade da palavra, Guita usa a letra como instrumento de incisão, de perfuração e, ao mesmo tempo, promove uma sutura e transforma o mutismo em silêncio, em relação preciosa com o vazio. O estilete da escrita se presentifica na palavra. Para Paulo Herkenhoff, “Guita Soifer está entre aqueles artistas para os quais fazer, construir e pensar se equivalem”.

          Em sua obra, a presença anuncia uma ausência, desde quando ela não dá a conhecer sua face e contempla um lugar para nós inatingível, até quando outros objetos indiscerníveis, sempre gastos, quando não enferrujados, se apresentam como despojos de outro tempo, cacos de vidas desaparecidas, um relicário garantindo sobrevida para a “memória dos sem-nome”, uma salvação pelos dejetos. O psicanalista Jacques-Alain Miller já escreveu sobre isso que resta de uma operação da cultura e que encontra o caminho da sublimação, que produz a partir do vazio e, justamente por ele, pela falta que subjaz a condição humana.

          Guita encarna em seu percurso a busca de um centro. No excêntrico da existência,  escreve sua biografia e nos alveja, assim como Pascal Quignard com sua escrita: “Por um lado escrever com esse nome na ponta da língua, de outro, com o todo da linguagem que foge sob os dedos. É o que se chama queimar, na aurora da descoberta”.